Geralmente, os jornalistas gostam de associar avanços tecnológicos a desemprego e concentração de riqueza. Mas, entretanto os últimos três séculos de história demonstram que a sociedade se beneficia a médio e longo prazo. Isto porque mesmo que tais avanços concentrem riquezas nas mãos dos acionistas das empresas que os criaram, estes mesmos avanços trazem ganhos de produtividade que, por sua vez, geram crescimento económico distribuídos por toda a população.
Um exemplo clássico é o caso dos fertilizantes. Em 1931, dois cientistas alemães ganharam o prémio Nobel pela invenção de um método para sintetizar o Nitrogénio, elemento essencial para a fotossíntese das plantas e principal componente dos fertilizantes. Este avanço possibilitou o uso de grandes quantidades de fertilizantes no mundo inteiro a uma fração do custo da alternativa passada que era importar Guano (uma substância derivada de dejetos de pássaros e morcegos) do Chile e Peru.
Como já somos diariamente bombardeados por previsões de catástrofes económicas e ambientais, apresentamos neste artigo uma perspectiva otimista para as próximas décadas com base nos trabalhos que cientistas e empreendedores estão a desenvolver agora nos seus laboratórios e empresas. O que se segue são, na nossa visão, os componentes fundamentais da nova arquitetura do futuro.
#1 Longevidade
Em 1901, a expectativa de vida nos EUA era de 49 anos. No final do século XX, esta expectativa atingiu os 77 anos. Se pensarmos que em 1901 nem os fertilizantes nem a penicilina tinham sido descobertos, começamos a entender o porquê deste incremento impressionante. Analogamente, devido a novos significativos avanços tecnológicos que serão introduzidos nas próximas décadas, espera-se por um novo salto nesta média; alguns autores arriscam uma expectativa de 130 anos para o final do século XXI.
Uma população que vive mais e melhor vai desenvolver novas necessidades e hábitos e com isto criar novos nichos no mercado inimagináveis até hoje. Além das indústrias mais óbvias, como o turismo e saúde, entretenimento, assistentes inteligentes, e-commerce, sistemas de telepresença e de realidade aumentada são segmentos do mercado com potencial para acrescentar dezenas de mil milhões de euros anuais à economia mundial.
#2 Natural Language Understanding
O campo de NLP (Natural Language Processing) é tão antigo quanto a própria área da Inteligência Artificial. Turing, no seu famoso artigo de 1950 “Computing Machinery and Intelligence”, introduziu a ideia de um teste a ser aplicado a qualquer hardware/software que pudesse simular uma conversa com um ser humano. 70 anos depois, nenhum sistema inteligente conseguiu ainda passar no teste proposto pelo pai da IA, mas empresas como a Google, a Amazon e a Microsoft obtiveram avanços significativos nessa direção.
Na próxima década teremos acesso a software cada vez mais sofisticado que será capaz de traduzir textos quase como um ser humano, dialogar com uma secretária para marcar uma consulta médica ou fazer uma compra online, auxiliar um consumidor a utilizar uma nova máquina ou a consertar o seu ar-condicionado. Com interfaces baseadas em voz e que permitam uma comunicação natural (com expressões do dia-a-dia), a digitalização do planeta estará consolidada. Pessoas em qualquer lugar do planeta poderão comunicar mais facilmente com as máquinas, fazer perguntas sobre saúde ou receitas culinárias, aprender à distância ou interagir com outros indivíduos ao seu redor.
No final da década de 2020, sistemas de NLP conseguirão ler milhares de artigos científicos e serão capazes de resumir o conhecimento destes artigos e produzir novo conhecimento através de sofisticados processos de inferência. Pela primeira vez na história, inteligência residente em software será capaz de realizar as suas próprias descobertas científicas: uma nova droga, hipóteses sobre fenómenos naturais, novos materiais, genética ou qualquer área do conhecimento humano.
#3 Casas Inteligentes
A IKEA anunciou este ano uma nova divisão de smart home que cuidará exclusivamente do desenvolvimento de projetos da empresa sueca para a casa do futuro. Sendo a líder em diversos países em vendas de móveis e decoração, a IKEA é mais do que uma loja de camas e sofás. A empresa é uma plataforma que hoje é usada por 1 mil milhão de pessoas no mundo. De lâmpadas inteligentes a cortinas que operam por comandos de voz, a IKEA posiciona-se para trabalhar com os fornecedores de plataformas de IA como a Amazon, o Google, a Apple e a Microsoft para criar a casa do século XXI.
Longevidade e smart homes são uma combinação que faz muito sentido do ponto de vista económico e estas empresas sabem disso. Elas estão a focar-se na população mais velha das próximas décadas que estará mais em casa, seja a trabalhar ou reformada, e com mais tempo para usufruir dos confortos que esta tecnologia pode proporcionar.
#4 Extended Reality
Com a inclusão do próximo mil milhão de pessoas na economia digital, os atuais líderes de consumo de media por streaming, Amazon, Netflix, Apple, Disney e Spotify, procurarão a consolidação. A Microsoft também corre por fora com games e pode até tornar-se líder no segmento ( a empresa pode partir para aquisições como o Fortnite, por exemplo). Entretanto, como a história da inovação demonstra, num mercado gigantesco como o do media, vai sempre haver espaço para novos produtos e serviços que ainda nem imaginamos.
A promessa da realidade estendida combinada com software inteligente pode finalmente criar ambientes imersivos que mudam radicalmente o modo como comunicamos, criamos, consumimos media, compramos e aprendemos. Imagine os efeitos na introdução da planilha de cálculo, do processador de textos e da World Wide Web. Nomes de peso no mercado global acreditam que XR terá um impacto parecido.
De todos os setores, a indústria da Educação, que mudou muito pouco desde a Grécia antiga, poderá ser uma das mais afetadas. Tutores artificiais inteligentes em ambientes de completa imersão e conectados a módulos de socialização com outros alunos podem redefinir a sala de aula de forma tão radical que poucos dos atuais players devem sobreviver. Será um espetáculo de destruição criativa cem vezes mais potente que o desaparecimento das famosas locadoras de DVDs, como a Blockbuster. Em exibição entre 2030 e 2040.
#5 Robotics
Embora o imaginário popular esteja cheio de histórias sobre humanóides saídos dos desenhos animados dos Jetsons ou de filmes como Terminator e Star Wars, no mundo real a robótica é muito mais abrangente do que a ficção científica e muito mais subtil. Qualquer máquina que exiba algum comportamento inteligente pode ser qualificada como um robô. Desde que programou o seu primeiro microondas ou aguardou o timer de uma torradeira, inadvertidamente já estava a usar ferramentas de automação.
Um dos exemplos que rodaram o mundo nas manchetes digitais de iphones e androids foi o grupo de pesquisa que treinou robôs para montar uma cadeira da mesma empresa que quer liderar o smart living, a IKEA. Nas grandes cidades da Ásia, onde o metro quadrado atingiu preços estratosféricos, os consumidores podem comprar móveis que ficam pendurados no teto enquanto a dona da casa recebe amigos para jantar ou fazer yoga.
Menos conhecido, mas igualmente surpreendente, é o projeto DFAB House desenvolvido em Zurich pelo The National Centre of Competence in Research (NCCR) Digital Fabrication. que combina drones, 3D printing com robôs para automatizar as tarefas repetitivas da construção de habitações. Projetos semelhantes estão em andamento em Eindhoven, na Holanda, Singapura, EUA e China. A combinação de impressão 3D e robótica gera menos desperdício de material e mais velocidade na finalização das casas. Novamente, o padrão que conhecemos da história do fertilizante repete-se: novas tecnologias a criar riqueza, neste caso ao diminuir custos de fabricação.
Quanto mais perto a próxima década fica, mais lemos sobre as possibilidades da robótica nos mais variados segmentos. Do outro lado do atlântico, Aerofarms e Plenty são duas empresas americanas que anunciaram projetos de agricultura vertical com produtividade da ordem de mais de 135 vezes do que métodos tradicionais, além de usar 95% menos água e zero agro-químicos. Também aqui o uso de automação para mover as placas com as plantas e regular a luz desejada (os técnicos descobriram que o sabor das plantas cultivadas variam de acordo com os ajustes das ondas de luz emitidas pelos leds!).
Do outro lado do atlântico, a rede online de retalho Ocado no Reino Unido automatizou o seu depósito com robôs que se movem numa grade com coordenadas X e Y, controlados por algoritmos semelhantes aos que existem nos aeroportos para o controlo do tráfego aéreo.
O uso da robótica nos mais variados segmentos da economia deve começar a ser sentido na segunda metade da década de 2020. Imaginem: robôs a construir habitações populares e seguras no continente Africano; fazendas verticais em comunidades pobres da América Latina ou serviços RaaS (Robots As A Service) que utiliza para montar todos os móveis da sua nova casa. O futuro trará certamente muitos mais robôs para a sua vida.
#6 Transport
Uber e Lyft combinados possuíam em setembro cerca de 72 mil milhões de euros de valor de mercado. A título de comparação, a Lufthansa, a maior companhia aérea da Europa tem valor de menos de 8 mil milhões de euros. Isto porque investidores e analistas vêem o valor e o potencial do transporte partilhado e apostam no futuro. Brigas com taxistas à parte, o transporte partilhado no Brasil, por exemplo, transformou as metrópoles do país, mais do que qualquer política pública. Os brasileiros fizeram 1 mil milhão de viagens somente no ano passado. Tais números refletem somente o começo da curva da disrupção que o mercado de transporte irá sofrer na próxima década.
O anúncio da Google sobre o seu projeto de lançar um veículo autónomo para o grande público, lançou ondas pelo globo e despertou os gigantes da indústria automobilística e empresas como a Uber. O “efeito manada” é positivo para o consumidor que agora assiste da plateia a uma corrida ao ouro de pelo menos 20 grandes players.
O carro autónomo promete acabar com o problema de estacionamento nas grandes cidades e com o desperdício de combustível. A maioria já nasce elétrico e portanto contribui para diminuir as emissões de gases no meio-ambiente. Na indústria, camiões e veículos de cargas autónomos já estão a ser usados para transportar containers em portos e nos arredores de Frankfurt e a autobahn já possui uma via exclusiva para estes veículos.
A economia de escala que esta tecnologia vai proporcionar e o aumento de produtividade só vai poder ser medido quando as primeiras cidades o adotarem. Dá para imaginar nunca mais chegar atrasado a uma reunião porque o taxista errou o caminho ou receber na varanda da sua casa uma garrafa de Rioja para o jantar entregue por um drone? O futuro promete.
#7 Space
Historicamente, o custo de lançamentos de foguetes desde a era espacial tem se mantido muito alto. Porém, nos últimos anos, novas empresas introduziram soluções com um custo muito mais competitivo, graças a recentes desenvolvimentos como, por exemplo, novos materiais e impressão 3D.
A Rocket lab da Nova Zelândia planeia lançar um foguete por semana já no próximo ano e, se tudo correr bem, os lançamentos passam a ser diários. O preço para colocar o seu satélite em órbita deve ficar em torno de 5 milhões de euros. 60 vezes menor do que os lançamentos tradicionais de foguetes da antiga geração. A Virgin Orbit, de Richard Branson, testou este ano o seu “cosmic girl”, um boeing que leva um foguete e faz o seu lançamento da estratosfera. A empresa divulgou que o custo do lançamento será de menos de 10 milhões de euros. Lembrando que cada foguete pode carregar vários nano-satélites, que entre outras funções, podem providenciar Internet rápida para o planeta.
Amazon lançou o projeto Kuiper com o objetivo de colocar uma “constelação” de mais de 3 mil satélites para providenciar Internet de alta velocidade em todo o planeta. A SpaceX já lançou 60 satélites em órbita do planeta com o mesmo objetivo e o plano é chegar a 12 mil satélites. Além disso, os foguetes da SpaceX funcionam como os serviços de ride-share, qualquer empresa pode pôr o seu pequeno satélite de até 150kg em órbita por menos de 2.25 euros.
Em 1972, astronautas da Apollo 11 trouxeram de volta para a terra amostras de rochas da cratera lunar Camelot. 13 anos depois, cientistas da Universidade de Wisconsin, descobriram que tais amostras eram ricas num elemento raro chamado Helium-3, um isótopo mais leve que o elemento original (com mais nêutrons). O Helium-3 tem o potencial de gerar energia através da técnica de fusão nuclear (a mesma usada nas centrais nucleares atuais) mas com o benefício de não gerar material radioativo, como é o caso do urânio. Os exploradores do espaço estão, sem dúvida, de olho nesta oportunidade que representaria geração de energia muito mais barata e biliões de euros em economia e talvez a extinção por completo dos combustíveis fósseis.
#8 Interfaces entre cérebro e máquina: super humanos
Cientistas da Universidade da Califórnia apresentaram este ano um protótipo de sistema capaz de ler e descodificar a atividade cerebral de pessoas enquanto elas falam. Ou seja, tais protótipos podem ser usados para criar software que permita às pessoas controlarem dispositivos, jogos e até comunicarem com um processador de texto utilizando somente “o poder da mente”. Perto destas possibilidades, as interfaces de voz que surgiram recentemente, vão parecer coisas de um passado remoto.
Pesquisa nesta área já existe há pelo menos uma década e, mais de 20 startups e vários grupos de Universidades do mundo inteiro, trabalham para desenvolver soluções no tema. Uma motivação fundamental deste trabalho é restaurar a função neurológica de pessoas com lesão medular, acidente vascular cerebral, lesão cerebral traumática ou outras doenças ou lesões do sistema nervoso. Outras aplicações desta tecnologia são o tratamento de depressão, esquizofrenia e da doença de Alzheimer.
A Neuralink, empresa que conta com o Elon Musk como investigador, anunciou implantes de até 3000 elétrodos no córtex de primatas por um robô cirurgião. Os elétrodos foram desenvolvidos pela própria empresa e são menores e de material menos danoso ao tecido cerebral. O objetivo inicial do projeto é possibilitar pessoas com dificuldade de locomoção a mover objetos, através de interfaces cérebro-máquina. A empresa Paradromics de Austin está a trabalhar em implantes semelhantes, com o mesmo objetivo, de acordo com a empresa. Testes clínicos estão previstos para começar em 2022.
Conclusão: o futuro é brilhante
No século 18, na França e Inglaterra, 30% da população jovem ativa consumia menos de 2000 calorias por dia, enquanto 10% da população mais rica tinha acesso a 4000 calorias diárias. Este cenário, só começou a mudar durante a revolução industrial e, finalmente após a segunda guerra mundial (na Holanda em 1944, 22 mil morreram por falta de comida), a fome foi erradicada na Europa, em grande parte pela introdução de duas tecnologias disruptivas: o fertilizante sintético e o trator. O gráfico abaixo mostra o preço do trigo de 1264 e 1996. Observe o início do século XX (descontando o período das duas grandes guerras), em que o preço diminuiu cerca de 600% nos últimos 100 anos.
Avanços numa área do conhecimento podem ter efeitos positivos em áreas completamente distintas. Analisemos o caso da indústria da construção. Estima-se que esta atividade consome 40% da energia em utilização no planeta. O uso de 3D printing e robôs otimiza os processos e evita o desperdício, reduzindo portanto o custo do produto final e, em última análise, diminuindo o nível de CO2 emitido na atmosfera.
Veículos autónomos e a procura de fontes alternativas de energia, embora sejam o que os americanos chamam de moonshots, projetos para a maioria da humanidade inimagináveis, podem em algumas décadas tornarem-se parte do nosso dia-a-dia. Além disso, a nova corrida espacial pode no curto prazo incluir o próximo mil milhão de seres humanos na Internet.
Ambientes de realidade aumentada interligados a tutores inteligentes podem educar milhões, em áreas que hoje não têm acesso à sala de aula tradicional. Imagine o Continente Africano e a América Latina a terem o mesmo acesso aos professores e tutores inteligentes artificiais que um jovem Europeu tem hoje.
É tentador perder-se na selva de notícias negativas que atravessamos todos os dias. Entretanto, as histórias que contamos neste artigo continuam a acontecer em centros de pesquisas e empresas do mundo inteiro. A descoberta de um cientista num lado do planeta, é distribuída em questão de minutos pela Internet através da comunidade científica.
Muitos atores da esfera pública não têm ideia de como será o futuro. Os governos continuarão a legislar e a supervisionar o progresso da sociedade reagindo mais do que agindo. Se quisermos saber para onde estamos a rumar, precisamos de acompanhar os cientistas e empreendedores que estão a projetar agora o que virá nas próximas décadas.